Vai fazer dois anos que Miguel (chamemos-lhe assim) deixou de praticar qualquer atividade física. Quando foi declarada a pandemia integrava os escalões de formação de um clube da região de Coimbra, que só em setembro passado retomou os treinos e jogos. Nessa altura, o adolescente não quis regressar.
Os pais insistiram, mas tornou-se cada vez mais difícil entrar no mundo de Miguel, confinado às quatro paredes do quarto a maior parte do tempo: é lá que faz as refeições, que tem televisão, computador, e a partir de onde joga online com os "amigos", com quem comunica através das redes sociais e de uma aplicação. Durante a pandemia, transitou do 7.º para o 8.º ano, mas "foi-se desligando cada vez mais dos colegas, deixou de se encontrar com eles na rua, porque os colegas eram também os companheiros da bola", conta a mãe ao DN, numa altura em que a família já recorreu ao apoio psicológico, porque percebeu, no regresso à escola, "que algo não estava bem: no final do primeiro primeiro as notas não foram boas, ele praticamente deixou de falar connosco e com o irmão (cinco anos mais novo) e um dia descobrimos que até de noite jogava. Quando o ia chamar de manhã para ir para a escola estava cheio de sono porque passava a noite a jogar. Estava completamente viciado".
O caso de Miguel é um dos que estarão a ser encaminhados para os serviços de pedopsiquiatria do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra (CHUC). E é apenas um entre milhares, sinais dos tempos, reflexo das alterações que estão a ocorrer entre os adolescentes e na própria sociedade, agudizadas com a pandemia.
Os números estão a ser ainda contabilizados e avaliados pelo SICAD - Serviço de Intervenção Nos Comportamentos e nas Dependências -, mas no último relatório elaborado para o Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos e Dependências 2021-2030, em dezembro passado, os dados mostravam-se suficientemente preocupantes: seis em cada 10 adolescentes jogam jogos eletrónicos em dia de escola, e 7 em cada 10 jogam em dias que não são de Escola. Segundo o documento, "os vídeojogos têm vindo cada vez mais a ganhar terreno ao longo dos anos como atividade de lazer, seja online ou offline, mas especialmente online, desde que estão disponíveis as plataformas que permitem jogar com pessoas do mundo inteiro em simultâneo".
Um quarto dos jovens tem problemas com a internet
De entre um conjunto de atividades de tempos livres o uso da Internet por diversão é a mais realizada pelos adolescentes portugueses, o que inclui frequentar as redes sociais, jogar, falar em chats, ou ouvir música. "Conversar com os amigos online é uma atividade bastante mais comum entre os 13 e os 17 anos do que entre os 9 e os 12 anos e ligeiramente mais comum nas raparigas, quando considerado o grupo etário mais avançado. Entre os 9 e os 17 anos as atividades realizadas mais frequentemente (uso diário) na Internet são ouvir música (80%), ver vídeos (78%), comunicar com familiares e amigos (75%), ir a uma rede social (73%)", refere ainda o relatório divulgado pelo SICAD.
Nos últimos anos, os inquéritos realizados junto dos jovens dão conta de alguns problemas relacionados com o uso da Internet. Ou seja, os alarmes têm vindo a soar há algum tempo, e não apenas agora. Mas a pandemia e, de certo modo, o silêncio do confinamento terão contribuído para que a sociedade os conseguisse ouvir.
Aos 18 anos, cerca de um quarto dos jovens participantes no Dia da Defesa Nacional menciona problemas associados ao uso da Internet nos 12 meses anteriores."Esta experiência de problemas aumentou entre 2017 (23%) e 2019 (27%), sobretudo entre as raparigas", sublinha o SICAD. Segundo os dados do estudo EU Kids Online, em 2018 cerca de 18% dos rapazes e 27% das raparigas (9-17 anos) reportaram experiências negativas na Internet no último ano, isto é, foram confrontados com algo que os fez sentirem-se desconfortáveis, assustados ou que pensaram que não deviam ter visto. "Estas prevalências variam pouco em função do grupo etário e, quanto a tendências, têm vindo a aumentar desde 2010, entre os jovens utilizadores. Nestas situações, tendem a procurar principalmente a ajuda dos pares e, em segundo lugar, dos pais".
Isolamento é um sinal
Há oito anos que Sónia Leirião integra a equipa de pedopsiquiatria do Centro Hospitalar de Leria. É tempo suficiente para se aperceber das diferenças que têm ocorrido no universo dos adolescentes e, sobretudo, na forma como a pandemia transformou os hábitos de uns e outros, pais e filhos.
A adição ao jogo online tornou-se uma constante nas consultas. Há um padrão. Os jovens comunicam entre si através do discord, uma aplicação que usam enquanto jogam ou vêm séries.
"O que nós sentimos é que se já há uma tendência para estes adolescentes se isolarem, com a pandemia e os confinamentos veio agravar-se. Como é que comunicam? Através das redes sociais. O que fazem? É tudo online. Com este isolamento todo, os pais inibiram mais os contactos".
No caso dos jovens, só os pais mais atentos e preocupados com todo este isolamento dos adolescentes é que resolvem pedir ajuda. Muitos confundem-no com o padrão típico da adolescência, pois com 13 ou 14 anos "é normal começarem a isolar-se no seu mundinho, na sua ilha", esclarece a psicóloga. "Se são pais muito cuidadosos, que chamam os filhos para fazer coisas com eles, ou que os chamam para ir para a sala ver televisão, fazem eles o pedido para que sejam acompanhados por um psicólogo. E sim, isso está a acontecer cada vez mais".
Sónia tem um sem número de exemplos que lhe ocorrem de pais que vão trabalhar de manhã e chegam à noite e notam que os filhos estão sempre "colados" aos ecrãs. Mas ela nota outras coisas: "as pessoas estão, de uma maneira geral, muito mais impacientes e muitas vezes dá jeito ter os miúdos ocupados num ecrã. E os miúdos também estão assim. Fechados, cada um na sua ilha. Há muitas famílias que não jantam juntas. Os miúdos comem no quarto, vivem no quarto. E isso tem consequências. Ainda esta semana tive um miúdo que é filho único, os pais são operários fabris, trabalham por turnos , ele está completamente sozinho o dia todo. A companhia são os ecrãs".
À equipa de pedopsiquiatria do Centro Hospitalar de Leiria têm chegado cada vez mais pedidos, à semelhança do que acontece por todo o país.
"As crianças e adolescentes que tinham atividades que pararam com o covid não retomaram. De manhã à noite passo a vida a alertar os pais. Há dias tive um miúdo com 8 anos que andava no futsal, a mãe tem um bebé com 18 meses. O pai chega depois das 21 horas. A mãe está sozinha com eles. Este menino facilmente fica entregue ao telefone, e ao jogo ou aos vídeos. Porque a mãe precisa de cuidar do outro. Um jovem adolescente acontece-lhe a mesma coisa. Os pais vão trabalhar, já não fiscalizam trabalhos de casa. Muitas equipas não retomaram, ou demoraram um ano e meio a retomar. Algumas equipas começaram quase do zero. Os escalões 12/13/14 - porque os clubes não conseguiam manter-se - ou perderam atletas ou simplesmente não retomaram. Eu insisto muito nisso, nas minhas consultas", afirma Sónia Leirião.
A psicóloga do CHL, que durante alguns anos foi também presidente de uma Associação de Pais e tem um envolvimento relevante na comunidade local, sublinha que as marcas são profundas e ainda não totalmente visíveis. "Isto está a ser muito impactante ao nível da socialização, do contacto olhos nos olhos, o saber estar em sociedade, o saber ler o outro . Os miúdos leem através de um ecrã. Este treino de aptidões sociais que fazíamos quer em contexto escolar, quer nas atividades extra-curriculares, o estar com alguém, está a perder-se. Os telemóveis já eram problemáticos, mas para além disso temos também toda a parte de gaming".
"As pedopsiquiatras notam que há muitos pedidos. Eu tenho sempre a agenda cheia", conta Sónia Leirião, que fala de uma população juvenil com "perturbações ao nível da ansiedade, auto-mutilações e excesso de ecrã, que normalmente é adição ao jogo. "O que fazemos em consulta é capacitação parental. Capacitamos estes pais para contrariarem estes meninos e alertamos para hábitos de vida saudáveis e socialização. Nós não somos eremitas. Não vivemos em cima do monte. Vivemos em sociedade. Nada está perdido se os pais agirem", conclui, lembrando que a adolescência "já é (por natureza) um período em que os miúdos se fecham". Ora, com quase dois anos de isolamento, "é nossa responsabilidade trazê-los para a rua. Tentar perceber qual é o mundo dos filhos".